Google-Translate-ChineseGoogle-Translate-Portuguese to FrenchGoogle-Translate-Portuguese to GermanGoogle-Translate-Portuguese to ItalianGoogle-Translate-Portuguese to JapaneseGoogle-Translate-Portuguese to EnglishGoogle-Translate-Portuguese to RussianGoogle-Translate-Portuguese to Spanish

segunda-feira, março 16

Hóspede da semana :: Luiz Felipe Botelho

Por conta de problemas no layout do blog, tivemos que publicar novamente o texto do Luiz Felipe Boteho. Pedimos descupas a todos e todas que deixaram aqui seus comentários.

O hóspede da semana no blog da Trupe é Luiz Felipe Botelho.
LFB é dramaturgo, mestre em Artes Cênicas (2007, UFBA), arquiteto (1983, UFPE), ator (1991, CFA/UFPE) e diretor de teatro. Trabalha desde 1993 na Massangana Multimídia Produções (FUNDAJ/MEC), onde cria roteiros e dirige séries e documentários para TVs educativas. No teatro, escreveu 28 peças – 26 já encenadas, 5 premiadas e 6 publicadas – muitas delas contendo abordagens alegóricas e releituras de antigos mitos. Seus trabalhos mais recentes são: o livro O jogo do ilimitado (2007, SESC) baseado no conteúdo de sua homônima dissertação de mestrado sobre flexibilização espaço-temporal na dramaturgia; e os documentários: A essência e o número (2009, inédito), uma introdução à Economia da Cultura; Quando as garagens virarem teatros (2008), sobre o trabalho de formação e difusão teatral feito pelo casal Argemiro Pascoal e Arary Marrocos na cidade de Caruaru (PE) e Lições de um palco sem fim (2008), sobre as várias possibilidades de contribuição do teatro na construção da cidadania. Atualmente organiza a criação de dois grupos de estudos de artes cênicas na FUNDAJ, um sobre dramaturgia e outro sobre interpretação.

Ajude-nos a divulgar esta Rede e boa visita!

Sobre o texto
É comum que um autor se depare com idéias divertidas e interessantes que nem sempre justificam uma peça. Quando me vejo nessa situação, aproveito para brincar e exercitar aproveitando essas idéias. Fiz vários estudos nessas condições, quase todos inéditos. É o caso deste “Baseado em fatos anormais”, escrito em julho de 2002 e parcialmente inspirado numa situação real. Nele exploro o formato do monólogo e exercito a fluência narrativa de uma personagem (mulher comum, classe média, meia idade) vivendo uma situação absurda mas não totalmente improvável, além de lidar com o ritmo e a possibilidade de criação de climas num tempo de comédia.

Baseado em fatos anormais
Luiz Felipe Botelho
www.liperama.blogspot.com


Ah, se eu tivesse um pênis! Nunca mais ia precisar de barreirinha para fazer xixi na rua. Mijar de cócoras? Nunca mais. Sabiam que uma vez fomos parar num hospital por causa de um xixi na beira de uma estrada? Foi. Estávamos viajando eu e o Rodrigo, meu marido. A certa altura ele parou o carro no acostamento pra gente urinar e eu fui logo entrando um pouco no mato, procurando um cantinho mais reservado, pra mim. Além de demorar para achar um lugar, eu estava usando um jeans apertado, horrível de tirar. Quando terminei de baixar a calça, vi Rodrigo todo lampeiro, já fechando o zíper, juntinho do carro. Bateu-me uma inveja. Me senti tão humilhada. Sempre achei injusto ter que me esconder para fazer a mesma coisa que os homens fazem ali, na maior, todo mundo vendo. Nem vi que tinha me acocorado justo em cima de um pé de urtiga. Pegou tudo aqui embaixo. Quando senti a coceira, entendi logo o que estava acontecendo. Mas, pânico só piora as coisas. Fui tentar me levantar e caí sentada numa touceira de mato seco. Não bastou a agonia da vontade de me coçar como uma louca, ainda fiquei com os pentelhos cheios de capim e carrapichos. Acham muito absurdo? Escutem o resto. E podem rir, se quiserem. É agora que o hospital vai entrar na história, mas, garanto que vocês não imaginam como.
E não foi porque a coceira piorou. Eu tinha pomada na frasqueira. Passei e aliviou. O problema foi Rodrigo. Quando me viu sair do mato me coçando, com a periquita parecendo uma guirlanda natalina, ele teve um tamanho ataque de riso que começou a passar mal. Não sei o que ele viu de mais, mas ficou rindo de se acabar. Rindo, sufocando e só tinha eu para ajudar. Tive que levá-lo para o hospital. Nua da cintura para baixo. Não deu para me vestir. Não consegui tirar os carrapichos. Sabem o que é carrapicho, não sabem? Já tentaram tirar carrapichos dos pentelhos? Não? Então imaginem. Pois é. Não é coisa que se faça assim, rapidinho. E eu tinha uma emergência. Ajudei meu marido a entrar no carro e me sentei toda torta no assento do motorista , com metade da bunda fora da poltrona, sem conseguir fechar as pernas direito. Rodrigo do meu lado, chorando de rir, morrendo sufocado. E eu lá, toda torta, afundada na poltrona, dirigindo quase nua pelas estradas do sertão de Pernambuco, com uma calça jeans apoiada no colo só para disfarçar.
Enfim, cheguei à primeira cidade que apareceu. Alívio? Nenhum. Parecia que o povo percebia de longe que havia alguma coisa errada no nosso carro. Quando eu perguntava “onde é o hospital”, a pessoa, ao invés de responder de longe, lá no canto dela, se aproximava e vinha para bem junto da minha janela. Eu tinha que deixar o vidro meio fechado, senão enfiavam cabeça no carro para falar comigo. Mesmo assim, elas viam muito bem o que tinha lá dentro, não é? Um homem semi desmaiado e uma mulher dirigindo torta, com as pernas à mostra, as coxas escancaradas e uma calça comprida no colo. As pessoas viam aquilo e ficavam com uma expressão cínica, de sacanagem, feito uma gozação, sei lá, olhando pra mim. Eu respirava fundo e devolvia o cinismo: “muito obrigada”.
Quando chegamos no hospital, tiraram Rodrigo do carro mas eu não desci. Preenchi a ficha lá mesmo, sentadinha, atrás do volante. Ai, foi péssimo, porque chegou um pessoal da administração todo gentil, querendo abrir a minha porta, “desça minha senhora, desça, venha preencher isso aqui fora, tomar uma água, um café” e eu segurando a porta “não quero, obrigada, não vou descer, não vou descer, EU NÃO VOU DESCER!!!”. E não desci. Eles ficaram se olhando, a cara feia: “deixem ela aí. Deixem essa doida aí”. Vocês acham que eu devia ter falado a verdade? Só havia homens do lado de fora. Não vi uma enfermeira. Eu até gritei, com o vidro fechado: “Chamem uma mulher! Não tem enfermeira aqui não?” Eles se entreolharam, balançaram a cabeça dizendo que não e eu ouvi um dizer pro outro “é sapatão, eheheheh”. Pense num inferno.
A todo instante chegava gente tentando me convencer a descer do carro. Teve uma hora que a calça que estava no meu colo escorregou justamente quando um menino me olhou da janela do passageiro. Ele viu tudo, óbvio, e saiu aos gritos, na maior alegria: “eu vi a priquita dela! a priquita da mulher é toda enfeitada, eheheheh ahahahah”. Olha, a vontade que eu tive era de sumir! Depois de matar o menino, evidentemente.
Quando finalmente preenchi a ficha e paguei a caução, eu disse pro homem da portaria: “vou ali e volto já. Tome conta do meu marido”. Saí com o carro, procurei um lugar deserto, me livrei dos carrapichos e... (como se ouvisse uma pergunta) o que? Como me livrei dos carrapichos? Com uma tesourinha, claro. Pensaram que eu ia tirar um por um, era? Deus me livre. Além do que até que as coisas estavam precisando ser aparadas mesmo. (voltando ao tom da narrativa) Bom, abri minha mala, botei um vestido e voltei para o hospital.
E não terminou aí! Lembram daquele menino? O que me viu no carro? O peste deve ter contado para todo mundo que me viu nua, porque tinha um monte de gente na frente do hospital acenando para mim e dando aqueles sorrisinhos. Nada de cochichos. Falavam alto, como se eu fosse alguma celebridade: “Lá vai ela, olha. Aquela mulher que eu te falei. A saboeira da priquita enfeitada. Eheheheh ahahahaha uhuhuhuhuh”. No começo eu ouvia e fazia de conta que não era comigo. Mas não deu para ignorar. Até que chegou uma menina e disse assim: “dona saboeira, por favor, pode dar um autógrafo pra mim?”. Eu dei. Para que? Foi o caos. Logo tiveram que fazer uma fila. Disseram que tinha saído no rádio e vieram me ver. E não parava de chegar gente. Chegou a um ponto que o hospital teve que chamar a polícia para conter a multidão. Pareciam uns loucos, gritando: “Saboeira, tcham, tcham, tcham, saboeira! Queremos a pri-qui-ta! Cadê a priquita enfeitada? Êêêêê! Mostra! Mostra! Mostra!” Dois dias vivendo isso. Dois longos dias. Foi o tempo do irmão de Rodrigo chegar e levá-lo para casa. É, também teve isso. Eu não podia levar meu marido de volta. Toda vez que Rodrigo olhava para mim, tinha outro ataque de riso. Precisou o irmão dele ir até lá buscá-lo. Eu fiquei lá, dormindo na sala de espera, porque não podia ficar com ele. Esperei sozinha durante aqueles os dois dias e sozinha voltei para casa.
Rodrigo passou um mês sem poder olhar para mim. Tomou remédio, fez terapia. Isso quase acabou com nosso casamento. Só não nos separamos porque a gente se virava bem na cama e não queria abrir mão disso por causa de um risinho a toa... Não... não foi só por isso, não. Justiça seja feita e verdade seja dita: sempre amei aquele porra e sei que ele me adora. Conto essa história porque foi foda, mesmo. Mas, fora esses dois dias infernais, só tenho lembranças boas da minha vida com ele. Coitado. Ainda hoje, se ele se lembrar disso, com certeza vai cair na gargalhada. Eu não. Dizem que, depois que essas coisas passam, a gente acha graça, não é? Isso não funciona comigo. Pelo menos neste caso. Há pouco tempo eu soube que virei uma lenda urbana naquela cidade onde tudo aconteceu. Lá, atualmente, quando as crianças se comportam mal, as mães dizem que vão chamar a “saboeira-da-priquita-enfeitada” para pegar elas. Como é que eu posso achar graça nisso?

Um comentário:

Amanda Virgínia Torres disse...

eu posso até ouvir a voz de felipe contando essa história.
texto realmente mto bom!